Sempre que arrumo a mala antes de viajar, guardo a passagem no mesmo lugar. Mas, dentro do táxi que me leva ao aeroporto, preciso conferir se ela está mesmo na valise de mão. Eu sei que está, pois eu mesmo acabei de colocá-la ali, mas, se não der essa última olhada, não me tranquilizo. Entretanto, há pessoas que, numa situação como essa, não se contentam em dar só uma olhada. Precisam olhar dez, vinte, trinta vezes e, mesmo assim, continuam em dúvida e ficam ansiosas.
Nem sempre é fácil estabelecer o limite entre preocupação natural e ansiedade exagerada diante de um fato. O que se sabe é que algumas pessoas são dominadas por pensamentos repetitivos e persistentes que geram medo ou sensação de desconforto muito grande. Esses pensamentos desagradáveis as obrigam a repetir determinados rituais para aliviar a ansiedade. Essa é a principal característica do transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), um distúrbio que provoca alterações na maneira de pensar, no comportamento, nas emoções e que pode interferir no desempenho das atividades rotineiras de seus portadores, prejudicando muito a qualidade de vida.
O QUE É
Drauzio – É sinal de transtorno psiquiátrico eu ter de olhar a passagem antes de chegar ao aeroporto mesmo sabendo que ela está dentro da minha valise de mão?
Fernando Ramos Asbahr – Não necessariamente sinal de um transtorno, mas não deixa de ser uma dúvida obsessiva, porque persiste, e você só fica aliviado quando abre a mala e vê que a passagem está realmente onde a colocou.
O conceito de obsessão pressupõe um pensamento, que pode ser uma ideia, uma palavra, uma música, com a característica de invadir a mente repetida e incessantemente até que a pessoa o exclua, na maior parte das vezes, por algum ato que chamamos de compulsão ou ritual compulsivo. No seu exemplo, seria verificar se a passagem está realmente na mala.
É importante esclarecer que, em alguns momentos, todo o mundo pode apresentar rituais compulsivos. O joguinho infantil de não pisar nas riscas da calçada ou de pular determinados quadrados do chão é um comportamento ritualizado, um tipo de compulsão que faz parte do desenvolvimento normal da criança. No entanto, usando novamente seu exemplo, se a pessoa verificou uma vez, a passagem estava ali, verificou novamente – “Será que é a passagem daquele voo mesmo?” – e tornou a verificar, vinte, trinta vezes, a ponto de atrasar-se e perder o avião, está caracterizado o transtorno obsessivo-compulsivo, uma doença psiquiátrica que se manifesta pela ocorrência de obsessões e, na maior parte dos casos, de compulsões.
Drauzio – Quais são as principais características do transtorno obsessivo-compulsivo?
Fernando Ramos Asbahr – É a presença de obsessões e compulsões. As obsessões representam a parte mental da doença. O pensamento obsessivo funciona como um disco riscado, que fica repetindo sempre o mesmo ponto da gravação. Em geral, isso acontece contra a vontade da pessoa. Ela não quer pensar daquela forma, mas a ideia e as imagens persistem.
Assim acontece com a criança na escola que de repente imagina a mãe sendo atropelada na rua. Embora tente afugentar esse pensamento, ele fica patinando dentro de sua cabeça e o único jeito de controlar a ansiedade é realizar o ritual que caracteriza a compulsão: sair da classe e telefonar para a mãe. Ao ouvir que está tudo bem, que nada de errado aconteceu, a criança volta mais tranquila para a sala de aula. Dali a cinco minutos, porém, o pensamento retorna insistente, e ela tem necessidade de repetir o ritual do telefonema. A única maneira de livrar-se da obsessão é executar a compulsão, sempre obedecendo a certas regras. Esse é um processo que se acentua com o passar do tempo e pode tomar conta da vida dos portadores de transtorno obsessivo-compulsivo.
SINTOMAS
Drauzio – Qual a diferença exata entre obsessão e compulsão nesses casos?
Fernando Ramos Asbahr – A obsessão é mais um pensamento que invade a mente, e a compulsão, a necessidade incontrolável de praticar um ato para aliviar a ansiedade provocada pelo pensamento indesejado. Muitas vezes, porém, a obsessão pode não aparecer. É o caso da criança de 4 ou 5 anos que lava repetidamente as mãos. Dependendo de seu grau de desenvolvimento, se lhe perguntarmos por que faz isso, o máximo que conseguirá responder é que lava as mãos porque se sente bem e pronto!
Já no adulto é muito mais comum o pensamento obsessivo estar por trás do ritual compulsivo. ”Será que peguei a passagem ou a deixei em cima da cama?” é a dúvida que o obriga a abrir a mala repetidas vezes.
Drauzio – Você disse que é comum as crianças desenvolverem determinados rituais a que obedecem rigorosamente e que isso é absolutamente normal. Quando o processo se torna patológico?
Fernando Ramos Asbahr – A fronteira é tênue. Na verdade, é muito difícil saber quando a mania, como popularmente se diz, ou os rituais compulsivos caracterizam uma doença. O certo é que quanto mais interferirem na vida das pessoas, sejam elas crianças ou adultos, mais próximas estarão da doença.
É o caso da criança que se atrasa para a escola, porque não sabe se veste a camiseta azul ou a vermelha. Fica imaginando que, se puser a vermelha, alguma coisa poderá acontecer com sua mãe, mas que usar a azul pode lhe dar azar e fazer com que algo de errado aconteça com seu irmão pequeno.
No Ambulatório do Instituto de Psiquiatria, já atendemos crianças de três, quatro anos que berram quando não conseguem pisar primeiro com o pé direito na calçada ao descer do carro e obrigam os pais a darem uma volta a mais para que repitam o gesto da maneira que consideram acertada.
Na verdade, dos primeiros sintomas até o diagnóstico, costuma passar muito tempo.
FAIXA ETÁRIA E FREQUÊNCIA
Drauzio – Esses transtornos costumam aparecer com que idade?
Fernando Ramos Asbahr – Há relatos de crianças com obsessões e compulsões graves a partir dos três anos de idade. Nunca vi, mas já ouvi que crianças de dois anos e meio apresentaram a doença. Pessoalmente, já encontrei pacientes com três anos, três anos e pouco, que desenvolveram rituais.
Drauzio – O TOC sempre começa na infância?
Fernando Ramos Asbahr – Não necessariamente. Um dado importante, principalmente para os pais estarem atentos, é que trabalhos com grandes populações revelam que 80% dos casos de transtorno obsessivo-compulsivo diagnosticados em adultos se manifestaram antes dos 18 anos e 50%, antes dos 15 anos.
Drauzio – Qual é a frequência de TOC na população?
Fernando Ramos Asbahr – A frequência do TOC na população está entre 2% e 4%. Isso quer dizer que, numa escola com mil alunos, 20 vão apresentar algum grau de obsessão e compulsão. É importante destacar que quanto mais são realizados os rituais, maior a possibilidade de aumentar a frequência e a intensidade dos pensamentos obsessivos e o problema vai tomando conta da vida da pessoa.
CLASSIFICAÇÃO
Drauzio – Como pode ser classificado o transtorno obsessivo-compulsivo?
Fernando Ramos Asbahr – Existem dois tipos: o transtorno obsessivo-compulsivo subclínico e o transtorno obsessivo-compulsivo propriamente dito. O subclínico caracteriza-se pela presença de obsessões e rituais que se repetem com frequência, mas não atrapalham a vida da pessoa. São sintomas obsessivo-compulsivos (não gosto muito do termo transtorno obsessivo-compulsivo subclínico) que ocorrem nesses casos.
Quanto ao TOC propriamente dito, as obsessões persistem até que o exercício da compulsão alivie a ansiedade, e é comum os portadores dessa doença terem parentes em primeiro grau com sintomas muito semelhantes.
Drauzio – O distúrbio é mais comum nos meninos ou nas meninas?
Fernando Ramos Asbahr – Depende da faixa etária. Ao longo da vida, a frequência é a mesma nos dois sexos. Na infância, o transtorno obsessivo-compulsivo é mais frequente nos meninos. No final da adolescência, porém, o número de casos vai se igualando e a frequência passa a ser praticamente a mesma entre homens e mulheres.
Drauzio – Como os pais podem identificar que as manias próprias da infância, estão exageradas no seu filho?
Fernando Ramos Asbahr – Devem chamar atenção a intensidade e a frequência com que as manias se manifestam na criança. Em geral, os sintomas são mais intensos no ambiente familiar. Entretanto, quanto mais fora de casa aparecerem e mais envolverem a figura dos pais, mais grave será o quadro. Acompanhei o caso de uma criança que, enquanto despejava água num copo, era acometida pelo pensamento ruim de que pessoas de sua família poderiam sofrer um acidente e, para impedir que isso acontecesse, era obrigada a voltar a água do copo para a jarra e da jarra para o copo até o pensamento desaparecer. Durante horas, ela repetia esse gesto até que os pais enchiam o copo por ela. Isso a fez sentir-se protegida e livre da ritualização. Geralmente, as obsessões têm cunho agressivo, catastrófico, e estão associadas a acidentes, doenças e mortes. Um exemplo é o da criança que começa a ter imagens dela própria brincando com um cachorrinho e, depois, atirando-o longe, contra uma parede.
INFLUÊNCIA PATERNA
Drauzio – Vocês conseguem identificar algo no comportamento dos pais que facilita o aparecimento de transtornos obsessivo-compulsivo?
Fernando Ramos Asbahr – No aparecimento em si, não; mas na perpetuação e intensificação dos sintomas, sim. Há pais que participam das manias e rituais. Lembro de uma criança que, enquanto estava assistindo a determinado programa, ninguém podia passar por trás da televisão e os pais, ao desviarem do caminho proibido, acabavam alimentando e perpetuando o ritual da criança.
Drauzio – Vamos voltar ao caso da criança que precisa jogar água no copo para espantar o pensamento de que a mãe poderia morrer. Com a perpetuação do ritual, o medo pode estender-se à morte do pai, do primo, do tio?
Fernando Ramos Asbahr – Em geral, sim. Não necessariamente com o mesmo conteúdo. No entanto, quanto mais ritualiza, maior o risco de amplificar o problema, pois o que ocorre primeiro é o pensamento ruim e a criança o associa ao que está fazendo naquele momento. Acompanhamos um paciente que não podia desligar a televisão com o controle remoto, se um pensamento ruim estivesse na sua cabeça. Acontece que, em praticamente todo o tempo de vigília, o pensamento estava ali e ele era obrigado a pedir a alguém para desligar o aparelho.
TRATAMENTO
Drauzio – Como deve ser enfrentado esse problema na criança? Como os pais devem ser orientados?
Fernando Ramos Asbahr – Em primeiro lugar, é preciso esclarecer os pais a respeito do que é sintoma da doença e do que não é e faz parte do desenvolvimento normal da criança. É muito comum eles acharem que o filho está “com frescura”, porque não consegue escolher uma roupa ou sair do banho antes de ter a sensação de que está completamente limpo.
Na verdade, a obediência a rituais pode atrapalhar não só a vida do paciente, mas a vida da família inteira. Muitos adultos mobilizam todas as pessoas da casa por causa de suas manias. Saber que isso é uma doença para qual há tratamento é o primeiro passo. Quanto mais for trabalhada a explicação sobre o transtorno, melhores serão os resultados do tratamento.
O passo seguinte vai depender muito da faixa etária do paciente. Há muita divergência sobre qual deve ser a primeira abordagem terapêutica. Em linhas gerais, tanto para adultos, quanto para crianças e adolescentes, existem dois tipos de tratamento: o medicamentoso e o não medicamentoso. O medicamentoso utiliza antidepressivos inibidores da serotonina. Outros tipos não funcionam. Entre os tratamentos não medicamentosos, o único comprovadamente eficaz é a terapia cognitivo-comportamental.
Drauzio – Em que consiste esse tipo de terapia?
Fernando Ramos Asbahr – O princípio básico é que a pessoa tem de expor-se à situação que gera ansiedade. Vamos pegar o exemplo da passagem de avião. Ficar no táxi, sem abrir a mala e aguentar a ansiedade subindo é o primeiro passo do tratamento. Brinco com as crianças que a ansiedade não passa do teto. Bate nele e começa a cair. Quanto mais elas conseguirem não realizar o ritual, mais depressa esse sintoma irá desaparecer.
No entanto, é preciso respeitar uma hierarquização no desenvolvimento desse processo terapêutico. O ideal é começar sempre pelos sintomas mais brandos. A chance de sucesso é zero, se começarmos pelos mais difíceis.
Recentemente, foi publicado um trabalho apontando que associar medicamentos à terapia cognitivo-comportamental traz melhores resultados do que se cada tipo de tratamento fosse utilizado isoladamente. Embora pessoalmente defenda a combinação desses dois métodos, cabe a ressalva de que, na infância, se não houver maior gravidade, deve-se iniciar sempre com o tratamento não medicamentoso.
PERGUNTAS ENVIADAS POR E-MAIL
Adriana Sales Pereira de Oliveira – São Paulo/SP - Existem pessoas mais predispostas ao transtorno obsessivo-compulsivo ou todos estamos sujeitos a apresentar essa doença?
Fernando Ramos Asbahr – Existem pessoas com um tipo de personalidade que chamamos de obsessiva. São metódicas, organizadas, mas não estão necessariamente expostas à dúvida obsessiva nem cumprem rituais compulsivos. Essa característica, aliás, pode até jogar a seu favor na vida, não é disfuncional.
Pensava-se antigamente que quem tinha personalidade obsessiva iria desenvolver transtorno obsessivo-compulsivo em algum momento. Não é verdade. Hoje se sabe que alguns rituais começam mais cedo e não estão relacionados com uma característica de personalidade. Apesar disso, aparecimento precoce dos sintomas e histórico familiar da doença são fatores de risco para a manifestação do TOC.
Claudia Cristiane Espósito – São Paulo/SP - O que acontece com o cérebro que impede a pessoa de ter controle sobre si mesma?
Fernando Ramos Asbahr – Com certeza, não é um mecanismo único. Vários trabalhos mostram um desbalanço na comunicação de determinadas zonas do cérebro, especificamente na parte frontal (o córtex orbital) e nas estruturas mais profundas (núcleos de base) do quarteto cerebral. É como se o disco estivesse riscado ali. Tanto a medicação quanto a terapia cognitivo-comportamental ajudam a limpar um pouco esse disco e a fazer com que não pule a toda hora ou, dependendo da intensidade do transtorno, deixe definitivamente de pular.
Valderlúcia Aparecida Bacco – São Paulo/SP – Como devemos lidar com o portador de TOC?
Fernando Ramos Asbahr – Em primeiro lugar, estabelecendo o diagnóstico. Depois, encaminhando-o para tratamento. Um ponto importante – daí a média de nove anos que costuma separar o início dos sintomas da prescrição de um tratamento eficaz -, é que o portador de TOC esconde os sintomas, porque sente vergonha, o que é um absurdo, pois eles só se tornam evidentes quando a doença está muito grave.
Por isso, a família deve convencer a pessoa com transtorno obsessivo-compulsivo de que é portadora de uma doença para a qual existe tratamento e que ela não é a única no mundo a manifestar essa condição."
Site
www.astoc.org.br
Fonte do texto: http://drauziovarella.com.br/crianca-2/toc-transtorno-obsessivo-compulsino/
Fonte da imagem: http://alessandramachado.com.br/wp-content/uploads/2012/04/transtornoobssessivocompulsivo-610x199.png