terça-feira, 22 de setembro de 2009

As Fronteiras da Medicina



As fronteiras da medicina




Um grupo voluntário de cirurgiões paulistas viaja para comunidades isoladas da Amazônia para curar índios. É o encontro da mais alta tecnologia com uma das sociedades mais rudimentares do mundo

Ivan Padilla (texto), André François (Fotos), de Pari Cachoeira (AM)



EMERGÊNCIA




A índia tucana Amélia Barreto (à frente, de azul) é levada pelos expedicionários para uma cesariana. A viagem durou 14 horas



Para as tribos indígenas do rio Negro, na Amazônia, as doenças podem ter duas causas. A primeira seria um feitiço rogado por índios de outras comunidades. Pode ser devido a uma boa colheita de mandioca ou à disputa pelo amor de uma mulher - casamentos entre as diversas etnias são comuns. A segunda causa de doença seria a desobediência aos rituais. Um exemplo: os índios acreditam que os waimasas, os homens-peixe ancestrais dos humanos, têm inveja da fertilidade das mulheres. Por isso, depois da primeira menstruação, elas devem ficar recolhidas num cercado de pari, uma armadilha feita de varas para pescar peixes em rios. Também não podem comer certos tipos de alimento. Se não seguirem essas recomendações, segundo suas crenças, elas fatalmente cairão doentes.



No fim de abril, na região do Rio Negro conhecida como Cabeça do Cachorro, na fronteira com a Colômbia, indígenas de diversas etnias tiveram suas enfermidades de causas místicas tratadas com a mais alta tecnologia. Durante uma semana, cirurgiões de Campinas e São Paulo estiveram em Pari Cachoeira, comunidade com 1.200 habitantes, a 1.100 quilômetros de Manaus - ou seis dias de barco, o principal meio de locomoção na Amazônia. Esses médicos formam um grupo voluntário chamado Expedicionários da Saúde. Nos últimos três anos, foram sete incursões amazônicas, em intervalos de seis meses, em média. Nesta última, realizaram 489 consultas e 105 cirurgias. Foi o encontro da mais avançada medicina com uma das sociedades mais rudimentares do mundo.



As cirurgias são feitas numa tenda móvel, na qual os médicos têm as mesmas condições de trabalho dos melhores hospitais do país. Trata-se de uma barraca do Exército adaptada, de 5 por 7 metros, com estrutura metálica. É isolada termicamente e tem dois aparelhos de ar-condicionado. Entre os equipamentos estão monitores cardíacos, tubos de oxigênio para emergências e modernos bisturis elétricos, que cauterizam imediatamente o corte. s Os aventais são descartáveis e os instrumentos esterilizados a 130 graus Celsius. O toque final de modernidade é dado por um iPod, ligado a uma caixa de som.



A maior parte das cirurgias é de hérnia e catarata. Eram doenças incapacitantes na Idade Média. Na Amazônia, ainda são



A alta medicina na Cabeça do Cachorro









Os expedicionários já realizaram 2.697 consultas
e 693 cirurgiasem três distritos de
 São Gabriel da Cachoeira,
na fronteira com a Colômbia.
Vivem na região 30 mil índios



Iauaretê Pari Cachoeira Tunuí Cachoeira Pari Cachoeira

Principais etnias arapaso, tariana, tucano,

desana e pira-tapuia

tucano, desana, tuiúca e hupda baníua tucano, desana, tuiúca e hupda

Expedição fev. 2004 nov. 2004 abr. 2005 nov. 2005 abr. 2006 nov. 2006 abr. 2007

Duração 15 dias 15 dias 15 dias 15 dias 7 dias 7 dias 7 dias

Consultas 109 155 166 672 438 688 489

Cirurgias 52 87 66 128 120 135 105




Enquanto ouvem Pink Floyd no aparelho inventado por Steve Jobs, os médicos operam hérnias, cataratas e pterígios. "Esses problemas são facilmente tratados nas sociedades urbanas. Eram incapacitantes na Idade Média. Na Amazônia, continuam sendo", diz o cirurgião Fábio Atui. A hérnia é um escape parcial ou total de um órgão (por exemplo, o intestino) por um orifício que se abre na musculatura. Geralmente, acontece no abdome ou na virilha, onde se formam calombos sob a pele. Ocorre devido a um esforço intenso. A hérnia provoca dor. Se não for tratada, pode causar uma infecção e levar à morte. O pterígio é uma membrana que cresce em direção à córnea. A catarata consiste na opacidade do cristalino. Os problemas são agravados pela intensidade com que os raios solares incidem na linha do Equador.



Nas cidades, mulheres dificilmente sofrem de hérnia. Na Amazônia, é um problema comum entre elas. As índias fazem os trabalhos braçais. Nos aturás, cestos de folhas presos à testa, elas carregam dezenas de quilos de mandioca. Sem enxergar, os índios não podem mais caçar e pescar. Esses problemas desestruturam a economia familiar. As cirurgias para esses casos são relativamente simples. Requerem, no entanto, condições assépticas e a intervenção de cirurgiões qualificados. Os índios dessa região só encontrariam isso em São Gabriel da Cachoeira, a maior cidade do alto Rio Negro, a três dias de barco, ou então em Manaus - e pelo sistema público de saúde. Isso quer dizer que eles poderiam passar meses na fila de espera, sem ter como se sustentar, muitos sem conseguir se fazer entender pelo médico.



CRENÇA



A hupda Cecília Pires tinha uma verruga do tamanho
 de uma bola de golfe na cabeça.
Em sua comunidade, achavam que ela era amaldiçoada






Algumas tribos sentem o choque cultural com maior intensidade. A etnia hupda é a mais "atrasada". Seus membros não falam português, medem apenas 1 metro e meio e são nômades. Vivem da caça com zarabatana e arco-e-flecha. São os párias entre as tribos da região. Ocasionalmente, trabalham nas roças de mandioca de outras etnias, como os tucanos, os tuiúcas e os desanas. A hierarquia é explicada por uma lenda. Uma grande cobra-canoa teria percorrido o Rio Negro. Os ancestrais dos diversos grupos foram saindo dessa cobra, em locais distintos. Cada grupo recebeu uma língua e um conjunto de rituais. Eles se consideram irmãos. Os mais velhos seriam os tucanos. Os caçulas seriam os hupdas. As posições dos demais variam de acordo com quem conta a lenda.



Alberto Pires, de 59 anos, é da comunidade hupda de Barreira Alta, a um dia de barco de Pari Cachoeira. Lá, as casas não têm parede. São feitas de troncos e têm telhado de folhas. Os hupdas vivem praticamente como seus ancestrais. A diferença é que hoje vestem shorts e moram em casas familiares, não mais em malocas coletivas. Têm vergonha, um sentimento incutido pelos padres salesianos, presentes na região há quase um século. Pires teve catarata por muitos anos - nem sabe dizer há quantos. Parou de caçar e dependia dos sete filhos. Foi a Pari Cachoeira para ser atendido pelos expedicionários. Teve os dois olhos operados. A cirurgia demora alguns minutos. A anestesia é local. O cristalino é fracionado em partículas minúsculas com um aparelho de ultra-som. Em seu lugar, é implantada uma pequena lente. A recuperação demora um dia.






PRIMEIRO MUNDO




Na tenda cirúrgica móvel,
os médicos têm condições semelhantes
às dos melhores hospitais do mundo.
Contam com bisturis elétricos e
 ouvem iPod enquanto operam



No momento da cirurgia, era como se Pires estivesse sendo abduzido por pessoas de touca, luvas e rostos cobertos por máscaras, numa tenda gelada. A comunicação era feita por meio de um intérprete. "Alguns de nós aprendem tucano pelo trabalho na roça. Português, ninguém fala", diz Jeovino Socot, hupda da comunidade de Taraguá-Igarapé, a um dia e meio dali, de barco. Socot aprendeu a falar português vendendo carne moqueada (uma espécie de defumação) em São Gabriel da Cachoeira. Foi a Pari Cachoeira ajudar as comunidades hupdas.



Cecília Olívia Pires, de 20 anos, da comunidade hupda de Barreira Alta, não sofria de nenhuma doença incapacitante. Mas tinha a vida atormentada por uma verruga do tamanho de uma bola de golfe num lado do rosto. Na comunidade, achavam que ela era amaldiçoada. Ela é mãe de um menino de 1 ano e meio, mas o pai da criança não quis se casar com ela. Durante a cirurgia, surpreendeu ao soltar uma frase muito bem pronunciada: "Acabou o soro". "A dificuldade de comunicação não é apenas pela língua. Os índios têm uma atitude de medo. Eles mentem para nos agradar", diz o cirurgião Fábio Panza. Para se fazer entender, os médicos aprendem algumas palavras nativas. "Isso cria confiança", diz a ginecologista Flávia Mambrini. Com a ajuda de índias mais versadas, ela anotou num caderno algumas traduções. Na hora das consultas, apelava para o dicionário manuscrito. Exame vaginal, em tuiúca, é ya fe. Menstruação, em tucano, é nhapico. Tirar a roupa, em hupda, é yuni po i.



Os tucanos são uma das etnias mais instruídas da região. Quase todas as suas comunidades têm escolas, construídas pelos salesianos. Os expedicionários se instalaram na escola de Pari Cachoeira. As salas de aula viraram consultórios e quartos de pós-operatório, com frascos de soro pendurados sobre as redes. Os índios esperavam em carteiras escolares a vez de ser atendidos. Quem precisava de cirurgia tinha o nome anotado numa lousa. Todos têm um nome em português e um nome indígena - esse nem sempre é revelado aos brancos ou aos índios de outras tribos, como proteção contra o mau-olhado. Muitas vezes os sobrenomes em português deixam de passar de pai para filho. Os índios inventam nomes e os trocam quando se cansam deles. Muitos se chamam Brasil.



Depois das cirurgias, os índios são benzidos.
Não sabem qual o motivo da cura.
Vivem entre duas culturas



Antes de chegar a Pari Cachoeira, os pacientes de comunidades mais afastadas passaram por uma triagem. Para isso, os expedicionários contaram com a parceria dos médicos da Fundação Nacional de Saúde, órgão do governo responsável pela saúde indígena. Três meses antes da expedição, esses médicos começaram a percorrer os rios em voadeiras, barcos pequenos e mais velozes. Parte do trabalho foi feita a pé. A primeira providência, ao chegar a uma comunidade, era procurar o capitão, o chefe local. Era ele quem autorizava a falar com os demais. "Para ganhar a confiança deles, era preciso participar do café-da-manhã coletivo", diz a médica de família Cecília Malvezzi. Então, os exames eram feitos. Os doentes foram avisados do dia em que os expedicionários estariam em Pari Cachoeira.



Entre os expedicionários estavam cirurgiões, anestesistas, pediatras, oftalmologistas, ortopedistas e ginecologistas - ao todo, 22 médicos e uma enfermeira. As ginecologistas realizaram testes de HIV e hepatite em papel-filtro (nenhum deu positivo). Entre as 250 mulheres atendidas, uma delas, a tucana Amélia Barreto, de 42 anos, da comunidade de São Pedro, a três horas de caminhada, apresentava um problema: seu bebê, prestes a nascer, estava em pé na barriga. Um parto natural seria arriscadíssimo. Amélia já tinha feito oito partos. Ela foi levada numa voadeira até São Miguel da Cachoeira. No hospital militar da cidade, foi submetida a uma cesariana, com sucesso. O filho nasceu com a saúde perfeita. Não ganhou nome. Devido à alta mortalidade infantil, muitos bebês são chamados de "menino" ou "menina" no primeiro ano de vida.



Os oftalmologistas distribuíram 160 óculos para presbiopia, ou vista cansada. Raimundo Campos Rezende, de 52 anos, da comunidade tuiúca de São Pedro, ganhou um par com 2,5 graus. Mas não gostou. Os óculos tinham aro grosso, de cor branca. São modernos, como os usados pelos freqüentadores da São Paulo Fashion Week. Os índios de sua comunidade riram ao ver Raimundo de óculos. "Queria um fininho. Consigo ver, mas fiquei feio", diz.





                                                                     ADAPTAÇÃO


Com redes e frascos de soro, a escola de Pari Cachoeira foi transformada em sala de pós-operatório



Entre equipamentos, medicamentos e comida, foram 12 toneladas. A bagagem foi transportada de Campinas e São Paulo a Pari Cachoeira, numa distância de 3.800 quilômetros, em aviões Brasília, Caravan e Búfalo da Força Aérea Brasileira. "Sem essa ajuda não conseguiríamos realizar a expedição", diz o ortopedista Ricardo Affonso Ferreira, idealizador do projeto junto com o anestesista Martim Ferreira, seu primo. A idéia nasceu de uma viagem ao Pico da Neblina, no município de São Gabriel da Cachoeira. Eles aproveitaram a excursão para levar 300 quilos de medicamentos aos índios ianomâmis. A partir daí, pensaram em planos mais ambiciosos.



Outros projetos médicos estão em ação na Amazônia. O Projeto Saúde e Alegria atua no Pará. Faz capacitação de parteiras e campanhas de vacinação infantil. Parte do atendimento é realizada num barco-hospital. A Associação Saúde sem Limites faz treinamentos de agentes de saúde e atendimento odontológico. Nenhum deles envolve cirurgias. Em Tunuí, em novembro passado, os expedicionários contaram com a presença de Jérôme Michon, dos Médicos sem Fronteira. O grupo, criado em 1971 para levar atendimento médico a regiões de conflito, é de certa forma a inspiração de todos que surgiram depois. Michon foi para ensinar. Acabou aprendendo. "Eles estão a nossa frente no conceito de campo cirúrgico móvel", diz. Os expedicionários querem ampliar o número de expedições de duas para seis a cada ano, por toda a Amazônia Legal. Para isso, o custo estimado seria de R$ 2 milhões por ano - atualmente, cada projeto custa R$ 300 mil, bancado por doações.



As expedições proporcionam benefícios inegáveis. Os próprios médicos, no entanto, se questionam. "Será que nós somos os jesuítas do século XXI? Acreditamos que fazemos o bem, mas podemos estar alterando o modo de vida dessas comunidades ao impor nossa cultura", diz Ricardo Ferreira. O pediatra Roberto Teixeira concorda. "Os índios sabem que os brancos dão leite às crianças quando elas desmamam. Querem fazer o mesmo, mas dependem da distribuição de leite dos brancos. E o que acontece? As crianças estão desnutridas", diz. A tucana Osmarina Maria Pena, de 33 anos, professora da escola de Pari Cachoeira, tenta explicar o conflito de culturas. "Acreditamos em nossa cultura. Depois de cada cirurgia, os pacientes pedem para ser benzidos pelos curandeiros. No final, não sabemos quem nos curou. Ao mesmo tempo, admiramos o conhecimento dos brancos. Queremos que nossos filhos sejam médicos, e não pajés. Mas não podemos. Não sei o que será de nós."



Fonte: http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI56984-15228,00-AS+FRONTEIRAS+DA+MEDICINA.html

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