Cientistas começam a descobrir por que a talidomida causa defeitos em embriões
A palavra "focomelia" significa membro de foca.
Ela descreve uma condição extremamente rara, em que os bebês nascem com membros que se parecem com nadadeiras.
Os ossos dos braços não se desenvolvem, mas em alguns casos os dedos nascem nos ombros; em outros, as pernas também não crescem.
O anatomista francês Etienne Geoffroy Saint-Hilaire inventou a palavra em 1836 e ela caiu na obscuridade por 120 anos.Mas de repente voltou a ser familiar 50 anos atrás.
Os médicos começaram a observar mais e mais casos.
Descobriu-se então que uma droga chamada talidomida, tomada pelas mulheres grávidas para aliviar enjoos matinais, era a responsável pelas malformações.
Jornais e revistas publicaram fotos chocantes de crianças deformadas e o medicamento foi banido em 1962.
Até então, 10 mil crianças, principalmente na Europa, nasceram com defeitos causados pela talidomida.
Apesar da fama, a focomelia permaneceu como um mistério científico durante as cinco décadas seguintes.
Os médicos já sabiam como evitar a talidomida, mas os biólogos especialistas em desenvolvimento não conseguiam explicar como a talidomida fazia os órgãos desaparecerem.
Somente agora os cientistas finalmente começam a solucionar o quebra-cabeça.
Ao decifrar os efeitos da talidomida, eles também estão descobrindo pistas surpreendentes sobre o desenvolvimento normal dos membros.
Eles esperam que esses conhecimentos se transformem em benefícios médicos.
A talidomida pode ser perigosa para os embriões em desenvolvimento, mas é eficaz no tratamento de doenças como lepra e alguns tipos de câncer.
Ao compreender como esta substância causa as deformidades nos membros, os cientistas talvez consigam inventar variações mais seguras da droga.
Neil Vargesson, que é biólogo de desenvolvimento na Universidade de Aberdeen, na Escócia, disse que, assim como todo mundo, ele ficou horrorizado com o nascimento de bebês com defeitos provocados por medicamentos.
"Seria fantástico poder acabar com este problema", disse ele.
Quando a talidomida foi comercializada pela primeira vez, em 1957, na Alemanha, a droga era considerada tão segura que podia ser vendida nos balcões das farmácias.
As empresas farmacêuticas então a introduziram em 45 outros países.
Porém, dentro de poucos anos, médicos alemães e australianos começaram a notar um aumento na taxa de focomelia e acabaram por associá-la à talidomida.
Nos Estados Unidos, cerca de 40 crianças nasceram defeituosas por causa da droga.
Quando seus efeitos colaterais vieram à tona, ela ainda não havia sido aprovada pelo FDA, órgão americano que regula alimentos e medicamentos.
Aproximadamente 40 por cento dos bebês nascidos com deformidades causadas pela talidomida morreram antes de completar seu primeiro aniversário.
Os que sobreviveram tiveram que aprender a superar o problema.
Os sobreviventes que nasceram com pernas, por exemplo, passaram a utilizá-las para se vestir e se alimentar.
"Eles são capazes de fazer coisas que as bailarinas sonhariam em fazer", disse Martin W.
Johnson, diretor do Instituto da Talidomida, fundado para dar assistência aos sobreviventes da droga na Grã Bretanha.
Infelizmente, como os sobreviventes já estão chegando aos 50 anos de idade, a tensão que eles colocaram sobre seus músculos começa a pesar.
"Aproximadamente 50% deles convive com dores crônicas todos os dias", disse Johnson em uma entrevista.
Apesar de toda esta devastação, a talidomida é usada ainda hoje.
Em 1964, cientistas israelenses descobriram que ela poderia controlar a lepra, reduzindo a inflamação causada pela doença.
Em 1998, o FDA aprovou a droga para tratar o mieloma múltiplo, um câncer das células plasmáticas do sangue.
Os pesquisadores estão testando a talidomida em ensaios clínicos para outras doenças, como Aids e doença de Crohn.
Os pacientes tomam a droga mediante uma severa supervisão.
Entretanto, na América do Sul e na África, algumas mulheres que a utilizam ainda dão à luz bebês com focomelia.
A forma como a talidomida age para deformar os membros ainda confunde os cientistas.
Na década de 60, os biólogos de desenvolvimento passaram a injetá-la em embriões de animais para produzir a focomelia.
A partir destes experimentos, eles desenvolveram 30 teorias, aproximadamente.
Alguns cientistas argumentaram que a talidomida danificava os nervos dos membros em desenvolvimento.
Outros disseram que a droga induzia as células dos membros em desenvolvimento a cometer suicídio.
E alguns relataram ainda que ela entrava no DNA das células de um membro em desenvolvimento, impedindo que elas produzissem as proteínas necessárias.
Infelizmente, os cientistas não puderam testar rigorosamente nenhuma dessas ideias.
Eles tinham pouco conhecimento sobre a forma de crescimento dos membros, pois não sabiam como rastrear as mudanças nas moléculas.
Assim, era impossível saber como a talidomida interrompia esta química.
A talidomida dificultou ainda mais a solução para o quebra-cabeça.
Quando alguém ingere uma pílula desta droga, as enzimas a dividem em formas mais simples, chamadas metabólitos.
A talidomida pode se dividir em pelo menos 18 metabólitos, sendo que cada um possui uma estrutura diferente, podendo interagir com as células de sua própria maneira.
A complexidade da substância e a obscuridade sobre a formação dos membros deixaram os cientistas paralisados.
"Estava tudo muito quieto", declarou o Dr.Vargesson.
"Mas, de repente, após vários anos, tudo passou a andar rapidamente." Em 2006, ele e uma equipe de colaboradores iniciaram uma investigação sobre os metabólitos da talidomida.
William D.Figg, do Instituto Nacional do Câncer dos Estados Unidos, purificou os metabólitos, enquanto Vargesson e seus colegas realizaram os testes em embriões de pintos.
Conforme descreveram em um relatório no ano passado, eles descobriram que apenas um metabólito testado, conhecido como CPS49, fez com que os pintos não desenvolvessem asas.
Os cientistas observaram algo mais sobre o CPS49: minutos após ser injetado em um embrião, ele passou a destruir os vasos sanguíneos em desenvolvimento.
Vargesson e sua equipe concluíram que a morte dos vasos sanguíneos havia impedido o desenvolvimento completo do membro.
Em um embrião saudável, os conjuntos de células se transformam em brotos, os quais crescem até se transformarem em braços e pernas.
A proliferação das células ativa os genes no broto, o qual fabrica proteínas para a formação do membro.
Segundo Vargesson, o CPS49 resseca o membro, fazendo com que muitas células morram.
As células que conseguem sobreviver não recebem os sinais apropriados para que possam se desenvolver.
Este modelo pode explicar como a talidomida pode ter um efeito tão drástico nos membros, sem causar muitos danos no restante do corpo.
Os membros se desenvolvem em um estágio relativamente avançado da gestação, iniciando seu processo cerca de 23 dias após a concepção.
O Dr.Vargesson explica que um embrião exposto à talidomida neste estágio sofre danos aos seus membros, enquanto o resto do corpo sofre menos, pois os vasos sanguíneos já estão maduros.
Mesmo que o modelo do Dr.Vargesson estivesse correto, ainda sim lhe ficariam faltando algumas peças chave.
Para que a talidomida seja capaz de provocar esses danos, é necessário que ela se ligue a um determinado tipo de molécula do embrião.
Em busca deste objetivo, o Dr.Hiroshi Handa e sua equipe, do Instituto de Tecnologia de Tóquio, cobriram glóbulos microscópicos com a talidomida e os mergulharam em várias proteínas.
Conforme eles relatam na última edição da revista Science, uma proteína conhecida como cereblon ligou-se firmemente à talidomida.
"Ficamos muito surpresos", disse o Dr.Handa.
Os cientistas já identificaram dezenas de genes envolvidos no desenvolvimento de braços e pernas, mas ninguém jamais suspeitou que o cereblon exercesse um papel neste processo.
Na verdade, ninguém sabia exatamente qual era a função do cereblon.
A fim de investigar mais a fundo o cereblon, Handa e sua equipe realizaram experiências com embriões de peixes paulistinhas.
A rede de genes responsável pelo desenvolvimento das nadadeiras destes peixes é quase idêntica àquela que forma os membros humanos.
Assim como os humanos perdem os membros quando se expõem à talidomida, os peixes perdem as nadadeiras.
Os cientistas cogitaram que a talidomida pudesse ter causado os defeitos ao imobilizar as proteínas do cereblon.
Então eles impediram que os embriões dos peixes produzissem o cereblon.
Conforme previsto, os peixes não desenvolveram nadadeiras.
Handa concluiu que quando a talidomida não consegue ligar-se ao cereblon, ela pode perder a força.
Então sua equipe realizou experimentos com o gene para o cereblon e descobriu que se ele fosse alterado em dois pontos, produziria uma proteína à qual a talidomida não conseguiria se ligar.
Eles injetaram o cereblon alterado nas asas dos embriões de pintos junto com a talidomida.
Os pintos desenvolveram asas relativamente normais, apesar da talidomida.
"Este relatório é muito importante", disse Rolf Zeller, da Universidade de Basel, na Suíça.
"Estas descobertas são completamente surpreendentes." Ele disse que agora os cientistas precisam observar se a talidomida também se liga a outras proteínas além do cereblon.
"Este estudo identifica uma peça chave do quebra-cabeça de 50 anos que estava por trás da tragédia da talidomida, mas é cedo para dizer que o caso está encerrado", disse Zeller.
Os cientistas precisam descobrir se a ligação da talidomida ao cereblon é de fato o processo que destrói os vasos sanguíneos.
Enquanto isso, Handa está investigando como o cereblon controla o desenvolvimento dos membros.
Vargesson disse que os resultados podem indicar o caminho para novas formas de talidomida que possam combater o câncer e outras doenças sem atacar o cereblon, mandando a focomelia de volta para a obscuridade médica. Segundo Vargesson, "esse seria o gol de ouro".
© 2010 New York Times News Service Tradução: Cláudia Lindenmeyer